segunda-feira, 25 de outubro de 2010

X Jogos Florais da Alma Alentejana

Aos meus amigos:

O texto que se segue, é o trabalho com que concorri aos X JOGOS FLORAIS DA ALMA ALENTEJANA (Jogos 2010) que o júri premiou com o primeiro prémio na categoria de conto.

A história, com cenários deslocalizados e registos ficcionados, é na essência verídica e foi-me contada por uma pessoa que já não está entre nós, a Isabel Dinis, avó dos meus filhos. Não posso, nesta hora de satisfação e alegria, esquecê-la. O prémio recebido, que dediquei aos meus filhos, à minha esposa, aos meus amigos Zé e Cidália, bem como às gentes da minha terra - Castelo de Vide – é, e com propriedade, dedicado à memória de Isabel Dinis Carita Caldeira, uma excelente contadora de histórias, falecida na vila de Nisa em 2006.

Para quem tiver paciência e gosto pela leitura


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Futuro Jerónimo, ou o ideário perpetuado.  



Ao certo, bem ao certo a Republica chegou com algum atraso, pelo menos aqui… – Não, não me refiro à longa agonia da oligarquia monárquica, essa é outra história que não cabe no conto que vos quero contar. Aqui, só passados dois ou mesmo três dias, após a proclamação da República, a plebe tomou conhecimento do novo regime político. Ao que se sabe hoje, a noticia até não chegou tão tarde assim, na verdade ainda na tarde desse dia o Administrador do Concelho terá sido informado por telegrama da Proclamação da República. Parece que o homem resolveu guardar segredo, uns diziam que aguardava a confirmação, outros ao invés afiançavam que o homem acalentava a esperança numa reviravolta.

Quem conta um conto, acrescenta um ponto. Mais dia, menos dia pouco abona para os factos. Mas certo é, que esse incidente, deu a João Marcelino a glória de anunciar aqui, à nossa gente, a implantação da República.

Simples republicano, maçom ou carbonário, nunca se soube, para o povo Marcelino, filho único dos donos da Herdade das Malhoas, era do contra. Do contra e amigalhaço da plebe. E isso bastava para ser popular. As ideias, dizia-se, eram influência de um tio que estivera implicado no 31 de Janeiro de 1891 no Porto, o qual, tendo escapado ileso ao massacre que se seguiu à revolta, se refugiou nas Malhoas. Tio e sobrinho eram muitas vezes vistos em franca confraternização com os trabalhadores da herdade. Em suma, o João Marcelino embora herdeiro de uma casa abastada, abraçara a causa republicana e contrariamente aos da sua igualha, apreciava misturar-se, cantar e divertir-se com o povo.

Em Outubro de 1910, Marcelino e o seu velho tio, encontravam-se em Lisboa onde foram apanhados pelos acontecimentos. Apanhados é uma maneira de dizer, na verdade havia quem afiançasse que o tio, o homem do 31 de Janeiro, fazia parte dos conjurados que derrubaram a monarquia. Por um acaso ou pelo envolvimento do tio – Vá lá saber-se! – Marcelino pode presenciar os memoráveis acontecimentos de 5 de Outubro. Viu no Tejo os navios insurrectos S. Rafael e Adamastor hastear a bandeira verde rubra; presenciou a primeira ofensiva rebelde contra o Paço; esteve na Rotunda e mais tarde no Rossio, onde presenciou a rendição das tropas monárquicas e por fim assistiu à proclamação da Republica.

A rua era então uma festa e ele esteve lá.

Impaciente por saudar e festejar com os seus a Republica, logo que teve oportunidade regressou à terra. Ao chegar, apercebeu-se da habitual pasmaceira, tudo corria como se nada tivesse acontecido. Entrou na barbearia, onde as notícias fluem, e ninguém abordou o assunto. Perguntou ao mestre barbeiro se já se sabia que não havia rei. Que não, respondeu mestre Samuel.

Saiu para a rua e caminhou a passos largos para o pelourinho. Ali, mesmo no centro da praça, em altas vozes deu a boa nova.

A principio as pessoas não percebiam o que se passava. Achavam até insólito, um homem sozinho, empoleirado no pelourinho a gritar… A curiosidade juntou as pessoas. Quanto mais gente chegava mais entusiasmo colocava nas palavras. Quando a populaça entendeu a razão daquele alarido entusiasmou-se. Extasiados gritavam, riam… os homens abraçavam-se, atiravam chapéus e boinas ao ar, davam vivas à Republica, vivas ao Marcelino, vivas ao tio do Marcelino, vivas a este e aquele…

Novamente a festa, um festejo como nunca fora vista por estas bandas.

João Marcelino, como qualquer bom republicano da época, era inimigo do trono mas, para grande desgosto de sua mãe, uma conceituada senhora frequentadora da igreja, era também avesso ao altar. Contudo, tal facto não o impediu de vir a ser padrinho de baptismo ou de casamento de um bom número de conterrâneos. Os pobres e sobretudo os trabalhadores das Malhoas viam naquele apadrinhamento uma bênção para os filhos, uma espécie de seguro para a vida. A sua devota mãe, substituía-o com afinco nos preceitos religiosos que o apadrinhamento impunha, enquanto ele, com base nos conhecimentos e amizades, encaminhava os afilhados para um emprego na administração pública ou algo parecido, poupando-os ao duro trabalho do campo.

Gradualmente o sonho de uma Republica, generosa e imaculada, foi-se desvanecendo nas trincas e lutas dos bastidores do novo poder. Nas ambições de uns e nas traições de outros. O operariado urbano e o povo humilde de Lisboa, a canalha como lhes chamavam, que tinha sido a base do apoio republicano é posta na ordem. Sindicatos e sindicalistas são perseguidos cavando-se um fosso entre o povo citadino e a nova elite. No país profundo, nomeadamente no mundo rural, o anticlericalismo das figuras de proa da República – as primeiras leis, mais que antimonárquicas visavam sobretudo a Igreja – permitiu ao clero, que não perdera influência, incitar os fiéis contra a nova ordem. Mais tarde a entrada na guerra de catorze a dezoito, as desastrosas e brutais consequências desse envolvimento, enterraram de vez qualquer resquício do idealismo republicano que ainda pudesse persistir.

Depois aconteceu o 28 de Maio e veio o Sidónio e por fim Salazar...

O nosso João Marcelino, contudo não era homem para desistir. Nem mesmo quando por falecimento do pai, ficou à frente dos destinos das Malhoas, se desviou do seu ideário. Se era ou não o mesmo ideário dos homens do poder, nunca o saberemos e não interessa para o caso. Marcelino continuou crente na República, uma República de todos e para todos.

Nem mesmo quando confrontado com a miséria que grassava por entre o povo, dava sinais de descrença, invariavelmente respondia:
– Os tempos estão difíceis, é certo… mas temos liberdade e fraternidade para o futuro.
Alguns mais atrevidos ripostavam:
– Mas isso não enche barriga som João…
– Tens fome? – quando lhe parecia grave, adiantava: Passa ali pela Maria da Estrela, faz o avio, manda apontar no meu nome que eu depois passo por lá.
– Seja por alminha de quem lá tem. – respondiam agradecidos.
– Seja!… – anuía sem convicção e seguia o seu caminho.

À filha que entretanto nasceu pós o nome de Liberdade.
A uma afilhada, para a baptizar exigiu que se chamasse Fraternidade. Os compadres, pobres e humildes pensando no futuro da filha consentiram e a criança virou Fraternidade Maria. Na vila era então comum o nome de Liberdade seguido de Purificação, de Conceição e até de Jesus como contraponto, ou então Fraternidade disto e daquilo.

Curiosamente afilhados não lhe apareciam. Parecia enguiço. Quando por fim se quebrou o agouro e nasceu um varão cujos pais convidaram o nosso conhecido João Marcelino para padrinho foi com satisfação que aceitou o convite. Porem colocou uma condição.
– Sim senhor, como vossemecê quiser. – Respondeu Jerónimo Leirinhas, pai do rebento.
– Tem que se chamar Futuro…
Ftur? Questionou angustiada a mulher.
Escondendo o seu desejo, fez-se desinteressado.
– Rapariga, é pegar ou largar, mas desde já te digo, estou disposto, quando chegar a altura, a pagar-lhe os estudos e a fazer dele um homem, tem é que se chamar Futuro, agora escolham...
– Ó som João mas Ftur… não parece nome de gente. Argumentava aflita Maria das Dores.
– Não sei rapariga, o rapaz é vosso, vocês saberão as linhas com que se cosem…
Dito isto pôs-se ao caminho. Jerónimo segurou-lhe o braço.
– O som João, o cachopo pode chamar-se essa coisa que vossemecê quer, Ftur ou lá o que é. Mas som João e se a gente lhe chama-se tamém…
– Jerónimo, como o pai… – acrescentou esperançada Maria das Dores.
– Pois que seja rapariga, até nem me parece mal; Futuro Jerónimo, parece-me até muito bem.


***

Assim, ainda que à sua maneira, João Marcelino perpetuou, no nome dos afilhados, o seu ideário republicano. Liberdade e fraternidade é o que temos para o futuro!

2 comentários:

  1. Parabéns pelo teu excelente trabalho que ganhou com todo o mérito o 1º. Prémio dos X Jogos Florais-Alma Alentejana. Este maravilhoso Conto, atesta de forma brilhante os dotes naturais de um notável contador de histórias.
    Tal como todos nós, também D. Isabel Diniz se sentiria orgulhosa. Obrigado e continua, Amigo!

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  2. Não escondo, como já te disse, que me soube bem - ao ego sobretudo - aquele prémio e os meus amigos, aqueles que o são de verdade, não se têm poupado em elogios. A todos agradeço, a ti e à Cidália de uma forma muito especial, porque têm sido inexcedíveis no que à cultura da amizade diz respeito. Vocês não me surpreendem, conheço-vos o suficiente para saber com o que conto, porem acho que, e digo-o sem falsa modéstia, o teu “Caleidoscópio do Sul” surpreende-me com o destaque que dá ao evento.
    Muito obrigado.
    Quanto á Isabel Dinis, esteja ela onde estiver eu sei que terá (teria) gostado.

    Nota: O texto que o Zé Raposo escreveu a proposito do evento está em: http://caleidoscopiodosul.blogspot.com/2010/10/jose-carrilho-ganha-1.html

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